sexta-feira, 10 de junho de 2011

Entrevista com Demétrio Magnoli - cientista político (11/2010)


DEMÉTRIO MAGNOLI

-Nunca antes...

A frase é péssima, porque faz com que se acredite que o Brasil começa com o governo Lula, e faz com que se perca a profundidade histórica. Quer dizer, o Brasil é um país com história e não é uma história de fracasso, derrotas e desgraças ou coisa assim, por isso existe uma economia dinâmica, por isso existe um sentido de coesão nacional do país e ausência de conflitos étnicos, conflitos internos, que é uma coisa que pouco se fala mas é muito importante no país, por isso existe uma agenda política consensual desde a redemocratização que é o combate à pobreza, a transferência de recursos para temas sociais... então a frase nunca antes na história deste país é muito mentirosa. As principais e as melhores coisas que o governo Lula fez foram coisas de continuidade, programas de continuidade do que tinha começado antes dele, no governo FHC, antes dele no governo Itamar, e antes dele no momento que se derrubou a ditadura militar. Essa frase é péssima porque ela traz uma idéia de salvacionismo e o salvacionismo é ruim, na democracia não há salvadores da pátria, na democracia a pátria se salva porque ela tem instituições que refletem a vontade popular.

-Lula em 2002 e hoje em 2010

Acho que não mudou muito, acho que há um aspecto muito positivo do governo Lula que é justamente o contrário da frase “Nunca antes”, esse aspecto positivo foi a capacidade de Lula de queimar o que ele adorava e adorar o que ele queimava do ponto de vista da política macro econômica. Então ele pegou o software que tinha sido criado no governo anterior pelo governo FHC , que software é esse? A idéia de câmbio flutuante, de metas de inflação, superávit primário, então é esse software que garante a estabilidade econômica e portanto a possibilidade dos brasileiros progredirem, melhorarem de vida, da economia crescer sem traumas, e ele manteve. Então o principal aspecto positivo do governo é aquilo que desmente a frase permanente de Lula. O aspecto negativo é que ele promove um retrocesso institucional, isso é um pouco surpreendente, não para mim, como um governo baseado no PT acaba fazendo acordo com as políticas mais retrógradas do país, com as antigas oligarquias que estavam sendo, aos poucos, afastadas do núcleo do poder, elas retomam o núcleo do poder em associação com Lula, na base de Lula.

Eu acho que também  traz coisas muito negativas do ponto de vista dos conceitos que orientam a nossa política externa, especialmente o desprezo absoluto pela idéia de direitos humanos, liberdade e democracia que são ativos que o Brasil tem no sistema internacional. O Brasil não tem bombas nucleares, o Brasil resolveu não ter bombas nucleares, ainda bem, assim a Argentina também não tem e não nos tornamos a Índia e o Paquistão da América do Sul. No lugar disso o Brasil tem uma constituição com uma série de valores, que são valores muito importantes a defesa da liberdade, da democracia, dos direitos humanos, esses valores seriam um ativo nosso na política internacional, um ativo moral, um ativo de valores, e eles foram sendo desperdiçados ao longo do tempo e hoje precisariam ser recuperados.

- Lula x exterior

Tem dois fenômenos que devem ser destacados: o primeiro fenômeno a eleição de Lula com toda a trajetória pessoal dele, o operário metalúrgico que chega à presidência é em si mesmo, uma confirmação da democracia brasileira e essa confirmação do fato de ser uma sociedade plástica onde o governo não está congelado ele fez muito bem para o Brasil logo no início do governo Lula e vem até hoje, a idéia de que bom, o homem veio de baixo, que passou fome na infância chegou à presidência do Brasil e o país não acaba, não houve colapso institucional, reação de forças conservadoras tentando derrubar ou qualquer coisa assim, então isso fez muito bem para o Brasil do ponto de vista internacional. Isso independe da política de Lula, isso tem a ver com o fato da sua eleição e com a sua trajetória. A outra cosia que fez muito bem para o Brasil, não fez só para o Brasil, fez para todas as chamadas grandes economias emergentes. Vivemos em um ciclo da economia internacional, uma fase da globalização, eu chamo de fase chinesa da globalização, no qual o Brasil surfou numa onda econômica na qual a China liderou, a Índia também surfou, a Rússia, a Turquia e esses países ganharam um peso porque o sistema internacional se modificou, com a retração do poder dos EUA, da Europa, as economias emergentes se tornaram  mais importantes e portanto o Brasil se tornou mais importante, não mais do que a Índia se tornou, é o mesmo processo que conduz os dois países. É um processo de mudança que nada tem a ver com a atuação específica de Lula e a ação de governo.

Eu acho, por exemplo, que a ONU precisa de uma reforma no conselho de segurança e que seria razoável que o Brasil tivesse um lugar no conselho de segurança mas eu acho que a campanha insistente do Brasil por um lugar no conselho tem atrapalhado até mesmo essa meta. E não só essa meta mas outros aspectos da nossa política externa que acabam se subordinando à essa obsessão. Muito melhor do que dizer: exigimos, queremos, um lugar no conselho da ONU, é dizer queremos uma reforma no conselho. Quando tiver essa reforma, será razoável que o Brasil seja considerado. São diferenças de ênfase e tem a ver com o fato de que a política externa Brasileira atual está muito obssessionada pela idéia de Brasil potência, que reflete de um lado a visão nacionalista anacrônica, do tempo dos militares, a idéia do Brasil potência, e que reflete por outro lado um terceiro mundismo igualmente anacrônico, então nessa idéia se encontram dois rios. Os dois antiquados do pensamento brasileiro. O rio nacionalista e o rio terceiro mundista. Isso não faz bem para a política externa brasileira e ajuda a explicar a nossa aproximação com regimes que não merecem a parceria com o Brasil e que não contribuem na situação do Brasil no sistema internacional como o próprio Irã, o caso mais evidente. E por isso, em função disso, nos últimos dois anos do governo Lula essa imagem brasileira lá fora começou a piorar, começaram a sair vários artigos em órgãos importantes, de formadores de opinião,na Europa e EUA, dizendo, bom, afinal, qual é a do Brasil? Afinal porque uma aproximação com um regime como o de Mahmoud Ahmadinejad? Afinal, porque dizer que os presos políticos de Cuba são iguais aos presos comuns do Brasil? Qual é o sentido disso? Porque esse operário que na base da democracia chega ao poder começa a falar essas coisas se ele foi perseguido por uma ditadura aqui no Brasil? Essas perguntas hoje aparecem no mundo.

-Caso Irã

Pois é, essa é a versão do Lula porque na realidade o que aconteceu é que a ação brasileira junto com a Turquia produziu um consenso negativo, todas as 5 grandes potências do Conselho de segurança da ONU mais a Alemanha, que estavam ligadas à discussão da questão nuclear do Irã, todas elas rejeitaram de imediato o acordo que o Brasil e a Turquia patrocinaram com o Irã porque aquele acordo só servia para o Irã prosseguir  o seu programa nuclear. O acordo foi rejeitado, não existe. Mas o impasse continua. O Brasil precisa tomar cuidado porque tem coisas que as nossas pernas alcançam. As nossas pernas alcançam muito bem a América do Sul, certas partes da África, todas os grandes debates comerciais e econômicos mundiais, mas as nossas pernas não alcançam a paz no oriente médio. Então procurar dar passos imensos como esses faz com que se rasguem as calças e foi isso que foi feito neste acordo, além de criar sérias desconfianças. O Brasil está hoje mais distante de um lugar permanente no Conselho de Segurança da ONU devido à essa ação no caso do Irã.


- Brasil na América Latina

Veja, liderança regional, liderança em geral não é algo que se proclama, é algo que se exerce, então o Brasil comete alguns erros ao proclamar a sua liderança regional. Mas por outro lado, se você olhar para a força de cada um dos atores,  o Brasil tem, deveria ter e deve exercer um papel construtivo de liderança na America do Sul e os outros países tendem a aceitar isso quando o Brasil não exagera muito, quando não fica falando muito alto que ele precisa de um lugar no Conselho de Segurança, o que faz a Argentina dizer que não quer. Os outros países tendem a aceitar essa realidade. O que aconteceu nesses 8 anos do governo Lula na America do Sul foi um projeto que não era ideológico de integração regional, ele foi atrapalhado essencialmente pela tentativa de Hugo Chávez de introduzir um projeto antiamericano de unidade da America Latina. Esse projeto de Chávez não é um, projeto de Lula, vamos deixar bem claro, não é verdade que Lula perfila atrás de Hugo Chávez. Mas esse projeto acabou destroçando a possibilidade do Brasil liderar de fato a America do Sul. Então o que aconteceu nos últimos 8 anos, foi muito mais uma fragmentação do que unificação política da America do Sul. Nós tivemos um conjunto de conflitos, impedindo que se fosse adiante com a união da America Do Sul, tanto é assim que a UNASUL é um fracasso, faz reuniões que não conseguem nem produzir documentos minimamente consensuais que digam alguma coisa. Por outro lado o MERCOSUL não consegue andar muito pra frente, isso mais por problemas argentinos do que de brasileiros. Então apesar de toda a retórica de unidade na America do Sul e de liderança regional essas coisas não se realizaram nos últimos 8 anos.

- Nos submetemos?

Depende, eu não sou daqueles que acha que o Brasil deveria ter reagido de uma maneira muito audaciosa a provocações como a provocação da Bolívia. Eu acho que faltou uma nota diplomática acompanhada de uma retirada temporária do embaixador para marcar que a ocupação militar em instalações da Petrobrás na Bolívia era uma provocação inaceitável, por outro lado eu não acho que isso deveria levar o Brasil a rebaixar as suas relações com a Bolívia. O Brasil deve ter boas relações com os seus vizinhos, mais ou menos independentemente do que façam alguns governos maluquinhos em cada momento. Porque o Brasil quer, acima de tudo, a estabilidade regional. Então deve manter boas relações com a Venezuela, com a  Bolívia, com o Paraguai mesmo quando Lugo discute  o tratado de Itaipu. Sem aceitar provocações infantis como a Boliviana  e sem deixar de defender valores, que são valores que estão inscritos, por exemplo, no tratado do MERCOSUL. Os direitos humanos, a democracia, são valores o que Brasil deveria defender sempre na America do Sul. Não se trata de romper relações e brigar com países vizinhos, isso não interessa para o Brasil, nem de passar mão na cabeça de países que violam direitos, que violam liberdades. Agora, nós sempre vamos ter uma turbulência política na America do Sul enquanto a revolução bolivariana estiver crepitando e isso sempre vai ser um problema sério para o Brasil prosseguir com o processo de  integração sul-americana.

- Zelaya

Aí não se trata de opiniões conservadoras, se trata do fato de que ali, em Honduras, existia um conflito interno entre facções em um regime de  democracia oligárquica. O Brasil não tinha nada que se meter nesse conflito interno a não ser para firmar certas posições consensuais que foi a posição da Organização dos Estados Americanos sobre aquele conflito, mas ele não tinha nada que nada que transformar ou aceitar a transformação da sua embaixada numa plataforma de intervenção nos assuntos internos de Honduras só porque Chávez queria isso. Na verdade aquilo lá foi uma armação de Hugo Chávez que o Brasil aceitou passivamente. Isso é quando o governo Lula e o Itamaraty começam a fazer política externa de olho em facções internas, ou seja a política externa brasileira acaba sendo sequestrada pelo PT, sequestrada por facções internas que querem alguma coisa. Nesse momento o governo pára de representar o país lá fora e começa a representar um grupo, uma tendência e isso é o pior que pode acontecer na política externa brasileira. É quase consensual hoje que o que o Brasil fez em Honduras é o que não se deve fazer em política externa.

-Caixeiro viajante vai deixar saudade no exterior com entrada de Dilma?

Essa questão de vender os produtos brasileiros lá fora foi sempre um discurso utilizado pelo Itamaraty e por Lula para disfarçar uma política de procurar relações com uma série imensa de países no Caribe, na África, em vista de um futuro voto para o Conselho de Segurança da ONU, então o Brasil multiplicou suas embaixadas pelo mundo a fora, aumentou muito o seu corpo diplomático, afagou ditadores, até mesmo no Sudão,  em vista do que é essa miragem do futuro voto na assembléia geral da ONU e sempre para explicar essas atitudes para um público interno dizendo que é para vender produtos brasileiros lá fora. Não, vende-se produtos brasileiros lá fora fazendo acordos de comércio e esse foi um grande problema nos últimos oito anos, que já era um problema antes. O Brasil não conseguiu fazer acordos de comércio, e enquanto a  rodada comercial multilateral de Doha fracassava e outros países como México, Coréia e Chile faziam uma série de acordos bilaterais de comércio, o que compensa em parte o fracasso da rodada de Doha, o Brasil não conseguiu fazer nenhum acordo comercial ao longo deste período. Se você olhar para comércio exterior do Brasil, cresceu, mas cresceu em números absolutos, em termos relativos a participação do Brasil no comércio mundial continua praticamente a mesma daquela que existia há 10 anos. O Brasil não avançou em participação no comércio mundial. Não é só culpa do governo, existem vários outros problemas aí, mas há uma parte de culpa do governo que é a falta de acordos comerciais.


- Legado de Lula para Dilma

Veja, um primeiro legado importante e positivo é que Lula não procurou o terceiro mandato. Em um determinado momento na America do Sul Chávez procurava instaurar e afinal conseguia a reeleição indefinida. Quando se discutia na Colômbia a possibilidade de mais uma reeleição... Lula tinha um popularidade que o permitiria tentar uma aventura de más consequências para a democracia que é o terceiro mandato, a idéia de reeleição indefinida, ele não tentou. Pode se discutir os motivos, cada um pode ter a sua teoria dos motivos, mas o fato é que não tentou e ao não tentar ele está dizendo, “a democracia brasileira se baseia no conceito da alternância no poder”, o que é uma coisa importante e positiva. O que mais de positivo ele deixa para o governo de Dilma Roussef ? Ele deixa uma série de pilares macroeconômicos  que ele recebeu, que se espera que o governo Dilma não atrapalhe isso, continua a respeitar o Software que Lula recebeu de FHC. E que nos custou muito, é o software que conseguiu acabar com a inflação crônica e por aí a fora.

E ele deixa um legado muito negativo, um legado onde a separação entre o Estado e o Governo, ou seja, entre o Estado e o partido ou coalizão política que está governando deixou de ficar clara. Nós andamos perdendo um Estado público, ou seja, um Estado neutro para cada vez mais ficar com um Estado cada vez mais partidarizado, ideologizado. E a outra separação que nós nos arriscamos a perder, e isso é coisa mais recente, é entre a esfera da política e da economia. Nos últimos dois anos do governo Lula, principalmente depois da quebra do Lehman Brothers, e da crise financeira internacional, o governo começou a achar que grandes subsídios a grupos empresariais privados, via BNDES, alianças de empresas estatais e  com grupos privados, alianças de fundos de pensão manipulados politicamente pelo Estado com grupos privados, ou seja a criação e uma corriola de grupos empresariais privados que orbitam em torno do poder, aquilo se poderia chamar de capitalismo de Estado, é uma coisa boa. Então essas duas heranças são os nossos dois maiores desafios. Para os próximos anos, o desafio de ter um Estado público, ou seja não partidarizado, e o desafio de ter uma esfera econômica separada de uma esfera política onde o Estado cria regras, fiscaliza, mas não favorece empreendedores, não tem os capitalistas amigos, capitalistas da ante-sala do planalto. Numa democracia a economia não funciona assim, nem a política funciona assim.

-Lulismo

O Lulismo é um fenômeno em processo, ou seja, ele não se completou. Que fenômeno é esse? É o fenômeno da criação de um bloco de poder, que não se restringe a uma coligação de partidos,... mas que além disso envolve atores não partidários. Que atores? Centrais sindicais que passam a ser financiadas pelo Estado, que passam a ser centrais chapa branca, uma elite sindical, um outro ator que participa deste bloco, são movimentos sociais, que se estatizam, ou seja, que são financiados pelo Estado e passam a ser porta-vozes do palácio do planalto e não das suas bases, e um terceiro ator que são empresários favorecidos pelo poder, através de subsídios do BNDES, de alianças com fundos de pensão e com empresas estatais. Então esse bloco de poder que alguns fizeram comparações com o sistema de poder no México do PRI que se chegou a usar a expressão, mexicanização, esse bloco de poder é o que se pode chamar de Lulismo. E ao chamar esse bloco de poder de Lulismo nós temos que dizer que o Lulismo é um fenômeno que não está completo, esse bloco de poder ainda é um bloco muito precário, ele talvez se complete daqui 8 anos, na hipótese que ninguém deixa de levantar da volta de Lula, da volta de São Sebastião.. depois do governo Dilma.

Um comentário:

  1. Gostei muito dos pontos levantados, mas em minha opinião ficou faltando analisar um dos pontos mais críticos de todos os governos - A CORRUPÇÂO.
    Sinto que há um certo receio por parte da midia e dos analistas póliticos em abordar este tema. Como anda o caso do mensalão??? Há previsão de uma decisão sobre todas as denúnicais feitas????
    Ficamos no aguardo.
    Abraço

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